“Foi de incerta feita (…) tudo, num relance, insolitíssimo (…) com cara de nenhum amigo” – logo de início, já se enuncia, por meio de negações hiperbólicas e superlativos, que algo inusitado e de mau agouro está batendo à porta do doutor. Não é de “certa feita”, não é “com cara de poucos amigos” que se aproxima o jagunço e seu cartório ambulante: três cavaleiros a prestar testemunho de um ato em-vias-de-se-tornar-público,quase um “papel passado” de uma incerta infâmia proferida por um certo “moço do Governo”, espertamente inferida pelo jagunço Damázio, dos Siqueiras. Quer ele saber o que vem a ser – como é mesmo o nome? – fasmigerado? ou seria familhas-gerado, ou faz-me-gerado? Enfim, havia corrido seis léguas para buscar saber, do doutor, qual seria “no pau da peroba”, o “que é mesmo que é “o que ele já havia perguntado (não ousava tentar repetir essas palavras impronunciáveis), já que “nenhum ninguém”, já que gente por se fingir de “menos ignorâncias” não havia lhe dado, “no caroço”, a informação que tanto procurava.
Habitando preâmbulos – ensaiando uma introdução, “no verivérbio”, o escritor responde, ponderadamente que: “Famigerado (grafia em itálico, como que repetindo uma palavra estrangeira – como era, na verdade, para o iletrado interpelador) é inóxio (sem aspas)”. A tentativa de neutralizar o sentido negativo da palavra em questão, no entanto, escapa ao ignorante homem do sertão, mas para o segundo interlocutor, o leitor, é evidente a falta das aspas, o que significa que a palavra não foi dicionarizada nesse estrito sentido, mas foi agrupada com as outras que ele recita como sinônimas: é “célebre”, “notório”, “notável”. E o escritor, na tentativa dereiterar a inocuidade das palavras, acrescenta que elas não representam “vilta nenhuma, nenhum doesto. São palavras neutras, de outros usos…” . Finalmente, percebendo, um tanto aliviado, que seria inútil qualquer explicação, que todas essas palavras, dicionarizadas ou não, foram parar no mesmo saco semântico, o interpelado refaz a resposta, trocando em miúdos, “em fala de pobre”: “Famigerado? Bem. É: “importante”, que merece louvor, respeito…”. A palavra em questão continuou sendo uma citação, quase um estrangeirismo que carecia de tradução, visto que permanecia escrita em itálico. Toda a dicionarização, toda a sinonímia fora em vão: o que importou para o jagunço foi a definição em “linguagem de em dia-de-semana”, comum, rasteira, ainda que imprecisa. Entretanto, seu significado pejorativo, subjetivo, foi relevado, não revelado.
Mas engana-se quem pensa que engana um matreiro homem-das-terras-gerais. Foi-se embora, meio-que-satisfeito. Satisfez a sua fama, que não saiu maculada: o cartório ambulante foi finalmente dispensado. Mas, lá, nas entrelinhas de seu vocabulário pessoal, ele sabia que aquele moço do Governo foi-se embora em boa hora. Sei não…
De Marie-Anne H. J. Kremer
Ensaio inspirado no conto “Famigerado”, da coletânea intitulada Primeiras Estórias de João Guimarães Rosa.
Veja também a versão cinematográfica legendada em inglês: https://vimeo.com/100207366
Mais um exemplo da tarefa do tradutor: legendar obras literárias em sua linguagem fílmica com criatividade e conhecimento profundo das duas línguas em questão.