Recentemente recebi uma proposta de trabalho do Ministério Público a respeito de um documento confidencial que não deveria e nem poderia alcançar o grande público. E me veio uma boa pergunta à mente: perguntar aos órgãos públicos se eles delegariam traduções, inclusive sigilosas, para qualquer um, para qualquer tradutor que não fosse tradutor público. Essa é uma questão importante, para início de conversa, ou seja: os legisladores da nação estão raciocinando nesses termos? Eles acreditam que o próprio governo vai confiar em tradutores que não sejam agentes públicos como nós?
Vejo novamente que está havendo uma inversão de valores; em vez de aumentarem o número de tradutores públicos por meio de outros concursos, está esse lobby de agências de tradução tentando invadir o nosso mercado ainda mais, com a benção da casa. Como se não bastasse, ainda querem nos fazer engolir que empresas estrangeiras venham a juramentar por conta própria documentos oficiais, usando o nosso brasão da República como se brasileiros e brasileiros concursados fossem. Ora, sabemos que nos EUA, basta um tradutor qualquer fazer um affidavit para que a tradução tenha fé. Mas não nos esqueçamos que o país tem um outro nível de confiabilidade e, principalmente, ele tem leis que funcionam. Fraudes são severamente punidas.
Por falar nisso, uma pauta importante seria exatamente essa: o Brasil não é exatamente um país honesto, basta lembrar que somos o pior exemplo de honestidade do mundo haja vista a indecorosa corrupção que assola o nosso país. Assim sendo, todo cuidado é pouco quando se trata de documentos que circulam entre as nações.
Em decorrência disso, já imaginou qual seria a reação dos cartórios no momento de apostilar documentos não oficialmente traduzidos? Eles não arriscarão seu bom nome uma vez que tampouco podem conferir as versões que deixarão o país com o seu aval. Diga-se de passagem, os tradutores públicos juramentados gozam de fé pública como os cartórios, e não se arriscariam a colocar seu bom nome em risco com traduções fraudulentas e incompetentes. Temos, nós, tradutores públicos, sinal público como os tabeliães, o que nos confere uma credibilidade incomparável.
O que estariam criando é uma grande torre de Babel modernizada, um caos jurídico, sem falar no caos linguístico que envolverá erros crassos tornando a comunicação impossível. Somos testemunhas desses erros no dia a dia; basta assistir filmes dublados ou com legendas para ficarmos estupefatos com a falta de conhecimento linguístico, inclusive do vernáculo. Outro dia mesmo fiquei sem entender o seria ” você vai ficar por terra”. Ah, sim, logo vi que seria o usual, o trivial “you will be grounded” o que simplesmente significa “você vai ficar de castigo”. Agora imaginem isso no universo técnico, jurídico, acadêmico. Como diziam na Embraer quando eu lá trabalhava como tradutora técnica: um erro nosso pode jogar um avião no chão.
Me valendo dessa metáfora aeronáutica, o Brasil será palco de muitos desastres linguísticos, comerciais e diplomáticos e não decolará se for assolado por incompetência e confusão babélica.
O Projeto de Lei 4625/2016 que tramita na Câmara dos Deputados em Brasília é um acinte aos preceitos de uma boa e velha tradução pública juramentada, elaborada com o rigor técnico e linguístico de um tradutor sério e concursado, que preza por sua merecida posição no mercado das traduções, que está sendo invadido por piratas aventureiros visando somente seu vil metal.
Prezamos o nosso bom nome, a nossa competência e a nossa boa fé e repudiamos o Projeto de Lei que tenta derrubar a nossa categoria profissional em nome de uma concorrência desleal que vem sendo praticada por agências de tradução sem berço e sem lastro.